A questão ética e algumas problematizações - Artigo

 


Por fim, faz-se necessário considerar a importância da ética na escrita psicanalítica, bem como abordar a diversidade de opiniões acerca da construção e publicação de casos clínicos, o que expõe dificuldades colocadas por essa tarefa tão importante para a psicanálise. Com relação à ética implicada na escrita de um caso clínico, Nasio (2001) pontua que se faz necessário mascarar todos os dados e detalhes que possam identificar o paciente. O autor também opina de que é importante fazer com que o paciente leia o documento, solicitando sua concordância para a publicação ou comunicação. Por fim, também recomenda que, para não perturbar o curso normal do tratamento e poder redigir a partir do conjunto do material do tratamento, é preferível construir o caso clínico e entrar em contato com o paciente depois de terminada a análise. Essa colocação é encontrada também nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” de Freud quando ele diz que não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o tratamento ainda está em andamento. Para Freud, os casos mais bem sucedidos são aqueles em que se avança sem ter um intuito em vista, o que permite se surpreender, recomendando que o material somente deva ser submetido a um processo sintético e de elaboração após a análise ter sido concluída (FREUD, 1912). Nesse sentido também pontua Figueiredo (2004), pois a construção do caso toca a verdade do sujeito, podendo então provocar situações de difícil manejo. Por outro lado, na sua opinião, também não se pode fugir disso, sob pena de estarmos abrindo mão de nosso mandato clínico e mantendo a cronificação que tanto condenamos pela convivência com a inércia da doença, o que leva também à desresponsabilização. Opiniões favoráveis à construção do caso clínico durante a análise, devido à possibilidade de surgimento de novos sentidos também para o paciente, foram expostas no começo deste texto, ao citar Mezan e Queiroz. Freud pensa que as distorções para a não identificação da identidade do paciente são inúteis, pois se forem pequenas não conseguirão proteger essa identidade, e se forem muito grandes prejudicarão a compreensão do caso. Sendo assim, é mais interessante optar pela omissão de alguns dados que podem ser reveladores, do que pela distorção de informações (MEZAN, 1998). A partir do momento em que o pesquisador seleciona, de todo o discurso do paciente, o dispositivo que irá canalizar um aspecto que o caso permite desenvolver, por mais singular que este seja, a sua escrita sempre exigirá de certa forma a perda do “vivido” como recurso necessário à sistematização metodológica. Por esse motivo, a escrita de um caso clínico é uma síntese problemática na opinião de alguns autores, pois muitas vezes fica reduzida a uma objetividade que, apoiada na teoria, confere sentidos nem sempre observáveis no caso examinado e estudado (MOURA; NIKOS, 2001). Peres (2002) também traz questionamentos nesse sentido, pois apesar de entender a importância de falar da clínica, problematiza a questão da possibilidade de se relatar uma análise, verdadeiramente. Sobre isso, lembra que não há registros de Lacan acerca de seus analisandos, dele tem-se apenas o silêncio com relação a essa questão, e a autora reflete que esse silêncio não decorreu apenas de um cuidado ético. Existem, portanto, dificuldades quanto à transmissão dos casos clínicos, principalmente quando se parte de premissas herdadas da medicina, cujos caminhos não são exatamente apropriados para a prática psicanalítica. Através dos casos clínicos sempre se busca demonstrar e ilustrar o fazer, pensar e saber psicanalítico, dentro de um padrão mínimo de compreensibilidade, mesmo sabendo que o sujeito do inconsciente está sempre a nos escapar. Por isso, a redução do relato aos parâmetros do já sabido da teoria é, para Peres (2002), uma forma de lidar superegoicamente com a clínica, impedindo o surgimento do novo, do excepcional e do singular de cada caso, porém a autora observa que é nesse ponto de conhecimento que se baseia grande parte dos relatos clínicos. Essas opiniões diferem das de outros autores, cujas colocações foram expostas ao longo deste trabalho, para os quais essa questão da seleção do material clínico e da criação de um personagem que jamais poderá ser exatamente o sujeito que nos procura é algo necessário para o distanciamento e para a elaboração do material clínico trazido pelo paciente. Sendo assim, pode-se perceber o quão desafiadora é a atividade de construção de um caso clínico e quão atentos devemos estar em relação a todos os aspectos envolvidos nessa produção, a fim de sustentar a ética proposta pela psicanálise e ao mesmo tempo contribuir para os avanços necessários à sua teoria e técnica. De qualquer modo, a escrita permanece sendo um instrumento de grande valor para o fazer psicanalítico, na medida em que permite o afastamento necessário para a elaboração do caso, a retomada do lugar de analista com a possibilidade de realizar uma nova escuta a partir da teoria, independentemente de sua publicação posterior. O escritor que se propõe a escrever um caso precisará, então, estar disposto a capturar o enigma do caso, que muitas vezes encontra-se perdido entre as teorias que se estabelecem sobre ele, descobrir e construir os significantes que o compõem, devolver-lhes a polissemia, proporcionar uma maior extensão da cadeia simbólica do caso e dar-lhe vida durante sua composição (ZANETTI; KUPFER, 2006).

Créditos: Débora Franke * Jerto Cardoso da Silva **