Caso clínico: conceito e função - Artigo

 


Conforme Nasio (2001), a expressão “caso” designa um interesse muito particular de um analista a respeito de um paciente, o que leva, muitas vezes, a um intercâmbio de experiência com colegas, seja na forma de supervisão, grupos de estudo, dentre outros. Outras vezes, esse interesse acaba produzindo uma observação clínica que constituirá o que se chama de caso clínico. Sendo assim, o caso exprime, então, a própria singularidade do ser que sofre e da fala que nos dirige. Em outras palavras, o caso é um “relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e respaldar um avanço teórico” (NASIO, 2001, p.11). O caso clínico é, então, a possibilidade de se privilegiar o tratamento de um sujeito na sua singularidade, incluindo na sua construção os efeitos transferenciais do próprio trabalho (OLIVEIRA, 2004). A escrita pode ser tanto de uma sessão, do desenvolvimento de uma análise ou da exposição da vida e sintomas de um paciente, mas sempre será um texto para ser lido e discutido, pois narra uma situação clínica que expõe uma elaboração teórica. Por isso, Nasio pontua que ele pode ser considerado como “a passagem de uma demonstração inteligível a uma mostra sensível, a imersão de uma ideia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e podemos, finalmente, concebê-lo como a pintura viva de um pensamento abstrato” (NASIO, 2001, p. 12). Para Viganò (apud FIGUEIREDO, 2004), o termo caso, a partir de sua significação original no latim, significa um encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível e assim, impossível de ser suportado. Já o termo clínica refere-se a debruçar-se sobre o leito do doente e produzir um saber a partir daí. Dessa forma, a autora resume que a construção de um caso clínico na psicanálise seria então “o (re)arranjo dos elementos do discurso do sujeito que “caem”, se depositam com base em nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra” (FIGUEIREDO, 2004, p. 79). Conforme Moura e Nikos (2001), o caso é o resultado da comunicação de uma experiência na qual o terapeuta escolhe uma situação de tratamento para desenvolver sua pesquisa. Para os autores, essa comunicação inicia com o registro de apontamentos anamnésicos que compõem uma história clínica e uma evolução das sessões de determinado período de tempo. A utilidade desta é a de servir como parâmetro para a discussão da teoria subjacente ao caso, ou seja, provocando uma problematização da teoria e uma tentativa de apoiar sua modificação ou confirmação.

Freud, ao falar do objetivo de um escrito clínico, coloca que este serve para expor o que ele chama de estrutura, ou seja, aquilo que se encontra recoberto ou sobreposto pelas camadas de material clínico, não sendo visível “a olho nu”. O objetivo do relato é então o de selecionar esse material clínico, de modo a contribuir para uma melhor compreensão de determinada estrutura (MEZAN, 1998). Nesse sentido, o relato de um caso clínico possui a peculiaridade de transmitir a teoria dirigindo-se à imaginação e emoção do leitor, de modo que o jovem clínico, leitor do caso, aprenderá a psicanálise de maneira ativa e concreta, pois imagina-se ocupando alternadamente o lugar do terapeuta e do paciente. Essa é, então, a função didática do caso, transmitir a psicanálise através do relato de uma situação clínica, isso porque a observação clínica e o conceito que ela ilustra estão tão imbricados que a observação substitui o conceito e torna-se metáfora dele (NASIO, 2001). Quando ocorre do caso ultrapassar seu papel de ilustração e metáfora, tornando-se gerador de conceitos, chamamos a isso função heurística do caso, conforme Nasio (2001). Isso se dá quando um exemplo clínico é tão frutífero que promove a produção de novas hipóteses que enriquecem a trama da teoria. Quando isso ocorre, conforme Moura e Nikos (2001) é porque a construção do caso, mais do que descrever uma realidade psicológica através do exame de uma história, traz à luz uma hipótese metapsicológica, e para que haja a construção do caso é preciso que a situação psicanalítica de supervisão sirva como espaço de interlocução entre o analista e a alteridade supervisora, pois assim o supervisor cumpre a função de alteridade na construção do caso clínico. Zanetti e Kupfer (2006) também trazem essa questão da supervisão na construção do caso clínico e acrescentam a ela o lugar da narração. Ao narrar um caso o analista relata ao supervisor o que o paciente falou e o que isso suscitou, provocou dentro da relação transferencial, e fez com que se debruçasse nos enigmas que compõem o caso. Nesses dois processos então, o de supervisão e o de construção do caso (escrita), o endereçamento do discurso, em forma de narração, a um outro/Outro em quem se supõe um saber é o que permeia ambos, sendo práticas baseadas na palavra, na linguagem, e, portanto parceiras do processo analítico. Essa narração do caso, seja na forma da supervisão ou do relato do caso, é necessária para que o analista possa voltar ao caso e ouvi-lo de um outro lugar, caso contrário poderá ficar amarrado no sintoma, repetindo um posicionamento provocado por essa captura, pouco podendo fazer pelo paciente (ZANETTI; KUPFER, 2006)

Oliveira (2004) coloca, por sua vez, que a escrita do caso clínico pode ser situada como uma forma de elaborar os restos irredutíveis de uma análise, os detritos que comportam os elementos resistenciais da escuta. Ao citar Edson de Souza pontua que o caso não é somente um exercício de teoria, mas sim um trabalho de movimento resistencial daquele que escuta. Assim, pode-se entender que a escrita pode ser uma tentativa de elaborar o que restou como questão de uma análise, aquilo que clama por uma simbolização. [...] a formulação desse enigma ou dessa interrogação é papel fundamental nosso. [...] o que justificaria ainda o nome de clínico ou de analista é o fato de que “se possa lidar precisamente com este buraco que, além do mais, é o que faz com que esse caso, que ali se transforma num caso, seja precisamente neste ponto que se torna caso: onde bordejamos esse buraco de ignorância e nos decidimos a lidar com ele. (ZANETTI; KUPFER, 2006, p.173). Para isso, trata-se de retraçar com detalhe os caminhos, construções e saberes mobilizados no decorrer da análise, considerando o tempo dos efeitos para produzir uma significação. A pesquisa deve então apreender esse movimento em seus desdobramentos, possibilitando além da compreensão do caso, quem sabe uma nomeação em relação ao diagnóstico – este entendido de forma estrutural conforme proposto pela teoria psicanalítica (o modo de cada sujeito lidar com a castração), e não no sentido nosológico, psiquiátrico (FIGUEIREDO; MACHADO, 2000). Ou seja, trata-se, ao escrever um caso, de poder situar a posição do sujeito na constituição de sua fantasia fundamental (ZANETTI; KUPFER, 2006). De acordo com Mezan (1998), escrever é provavelmente catarse e elaboração ao mesmo tempo – uma catarse elaborativa, porque no movimento de retomar, pensar, procurar ligar as imagens em frases, opera-se um certo distanciamento. No que compete à distância com relação à situação transferencial, Clément narra a seguinte história:

[...] havia duas tribos de índios que viviam na mesma margem do rio; viviam brigando, às turras uma com a outra. Um belo dia, os dois caciques se reúnem e decidem que uma das tribos vai atravessar o rio e se instalar na margem oposta. Mas até onde a segunda tribo deve se afastar da primeira? Depois de pensar, o cacique da tribo que fica na primeira margem diz para o cacique da que atravessará o rio: vocês atravessem o rio e comecem a andar. Andem até chegar a um ponto de onde já não possam avistar a nossa aldeia, mas de onde se possa ainda ver a fumaça do nosso fogo: essa vai ser a distância ótima. Nem tão perto que fiquemos brigando o tempo todo, nem tão longe que vocês não possam ver a nossa fumaça, nem nós vermos a fumaça de vocês (MEZAN, 1998, p. 239). Assim, Mezan (1998) coloca que escrever serve justamente para estabelecer essa distância ótima, a partir da qual o analista retoma o seu lugar de analista. O escrito, então, funciona como a continuação do diálogo com o paciente, mas com um paciente criado segundo as necessidades e o padrão de medida do analista. De qualquer forma, mesmo com essa criação, algo do que foi se conserva. O paciente sobre o qual se escreve é de certa forma um personagem, mas como tal está calcado sobre alguém que efetivamente existe (QUEIROZ, 2005). A construção do caso é então a refundação da experiência da análise, ocorrendo em uma situação psicanalítica de pesquisa, onde o destino da transferência não é a liquidação, mas sim sua instrumentalização. O analista dá seu testemunho por escrito, o qual poderá servir de referência a outras pesquisas e à gestão de novos problemas e hipóteses (MOURA; NIKOS, 2001). Além disso, o caso cumpre a função de um distanciamento que permite ao analista revisitar o caso, podendo compreender aspectos até então não compreendidos.

Créditos: Débora Franke * Jerto Cardoso da Silva **