Escrever a clínica em psicanálise - Artigo

 

Como colocado, dada a relevância do fazer pesquisa em psicanálise como forma de contribuir para a sua evolução enquanto saber e prática, inicia-se contextualizando essa forma de investigação expondo suas características, sua importância para a prática clínica e os efeitos que nela produz. Os princípios norteadores da pesquisa em psicanálise não diferem daqueles que estabelecem seu exercício clínico, ou seja, são os mesmos que sustentam a prática. Desse modo, também a pesquisa se pautará pela inclusão do desejo do pesquisador na constituição do enigma que busca desvelar através do seu trabalho. A essa inclusão do desejo chamamos transferência, entendida como sendo o fundamento de todo o trabalho de pesquisa em psicanálise e que permite situar a noção de realidade com a qual operamos. Essa realidade baseia-se na premissa de que a mesma é sempre discursiva e pulsionalmente produzida, de modo que a ética na qual a pesquisa se sustenta é a de considerar a realidade sempre a partir da inclusão do sujeito na experiência (POLI, 2005).

Nesse sentido, o que a psicanálise nos indica é que toda a relação do sujeito com o mundo é mediada pela realidade psíquica, por isso a importância de considerá-la antes de qualquer outro fator em uma pesquisa psicanalítica (Figueiredo & Machado, 2000). Sendo assim, a ética da psicanálise é exclusiva dessa forma de fazer pesquisa, condicionando a investigação ao desejo de formação em psicanálise: Nosso trabalho de escutar o inconsciente é aquele que reconhece ao sujeito um lugar na linguagem, no qual o processo de alienação/separação indica uma direção ética: não à exclusão do sujeito, isto é, não a um sujeito sem Outro, não alienado ou fora da linguagem; mas também, não a um sujeito sem corpo, sem lugar de expressão singular no circuito das pulsões (POLI, 2005, p. 46). A partir do exposto, tem-se que a ferramenta metodológica na pesquisa em psicanálise é a construção do caso clínico, cuja sistemática de análise dos dados não é restrita ao domínio do signo, em conteúdo ou discurso, mas sim ao domínio do significante e, assim, do sentido. Desse modo, a base para isso é a leitura dirigida pela escuta, para que se possa identificar novos significantes nos dados trazidos por sua investigação. Essa é então a essência da pesquisa em psicanálise: promover a abertura de sentidos para os dados sobre os quais o pesquisador está debruçado (MOURA; NIKOS, 2001). O ato de escrever a clínica inscreve, então, o ato clínico, transformando-o em teoria, visto que as construções conceituais daí decorrentes são edificadas concomitantemente às reflexões sobre a experiência clínica, representadas nas histórias clínicas. Para isso, faz-se necessário não haver dissociação entre teoria e prática, entre pesquisador e objeto de pesquisa na psicanálise (OLIVEIRA, 2004). Conforme Queiroz (2005), escrever a clínica é um ato simbólico que permite a metaforização da experiência psicanalítica, servindo de base para construções metapsicológicas de modo a elaborar um novo saber no corpo da psicanálise. Essa escrita a partir de fragmentos clínicos não ocorre sem que o pesquisador psicanalítico situe a si próprio também, visto que a análise se dá no espaço da transferência, na qual estão sempre implicados analisando e analista. A importância da relação transferencial é observada desde as histórias clínicas relatadas por Freud, as quais são um testemunho de que a escrita psicanalítica se produz a partir do lugar que ocupa aquele que escuta, ou seja, a construção do caso revela, assim, a posição que o analista assume no discurso do Outro (Oliveira, 2004). Então, não é somente a análise que se desvela a partir da escrita, mas sim a própria posição do analista, sendo possível ao paciente, a partir da leitura, intervir no discurso do analista, de maneira que a análise se transforma, “vira pelo avesso”, conforme Queiroz (2005). Da mesma forma, Oliveira, ao lembrar a invenção da psicanálise, coloca que “Com a entrada em cena da ‘orelha freudiana’, o paciente passou a ocupar o lugar outrora reservado ao médico; tornou-se criador, relator e romancista, inventando um discurso e fabricando seu caso” (OLIVEIRA, 2004, p. 84). Mezan (1998) comenta que o fato de se saber objeto de um estudo por parte do analista não é algo inteiramente inocente no andamento do processo analítico e mesmo na resolução da transferência. Isso porque quando se escreve sobre um paciente, isto ainda é parte da análise desse paciente, sendo um diálogo com ele. Mesmo que o escrito seja dirigido a leitores em geral, o autor coloca que o paciente é sempre um dos mais importantes destinatários do escrito. Além disso, a escrita também assume consequências para a análise, possui uma ação na clínica funcionando como um ato analítico nas situações em que o sujeito lê o seu caso. A história falada, a história escrita e a história lida constituem três momentos de reorganização do simbólico, de modo que o escrito funciona como um terceiro na relação analisando-analista (QUEIROZ, 2005). Conforme Nicole Berry (apud MEZAN, 1998, p. 219), “A escrita é a renovação desta experiência em que falo comigo mesma, antes de falar ao outro, antes de refletir utilmente. Ela é pôr confiança em mim mesma, luta contra as perseguições internas que me imponho: críticas, racionalizações, recusa”. Em sua opinião, é vital a presença de um terceiro para o desenrolar do tratamento, seja esta presença a da escrita, da palavra ou do pensamento. Assim, o terceiro pode ser o próprio analista escrevendo para outro e dessa forma tomando distância. O método do relato de casos clínicos situa-se, então, na passagem da experiência psicanalítica para a elaboração teórica, constituindo-se assim o primeiro passo e ao mesmo tempo o passo fundamental para o encontro da experiência da análise com a elaboração teórica. Em outras palavras, é por meio do relato que se terá acesso ao caso e a tudo o que ele suscitará em nós.

Créditos: Débora Franke * Jerto Cardoso da Silva **